quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O António dos leilões

Crónica escrita hoje por Vítor Belanciano, n'O Público, o único jornal português que ainda faz com que as crónicas assinadas sejam pagas. Nem isso me faz perder a vontade e o tempo para a reescrever à mão. Os negritos são meus. Aqui vai:

" Se Portugal tivesse estrelas pop, o minhoto António Joaquim Rodrigues Ribeiro, de Lugar de Pilar, Amares, nascido em 1954, seria uma delas.
Quando já era Variações, na década de 80, subia o Chiado, pescoços virando-se para trás, espreitando um homem de longas barbas e roupas demasiado extravagantes para a Lisboa compostinha de fato e gravata envergada por obrigação.
Ele lá seguia, Rua do Carmo acima, Rua GArrett abaixo. Não olhava para o lado. Não por afectação. Menos por provocação. Mas por afirmação. Não era personagem. Era genuíno, o António. Era como era.
Na música continua a ser um dos melhores. Voz particular. Música capaz de transcender estações e gerações. Anos 70, 80, 90, este século, Londres, N.Y., Portugal, o mundo. E, tudo isto, nas calmas.
Consta que era um anjo de pessoa, gravou o álbum Anjo da Guarda em 83. Gostava de Dar e Receber, título que lançou em 84. Mas que diabo!, deu tanto, receber pouco deve ser lixado.
Veio em todos os jornais e foi notícia de encerramento de telejornais. O António foi a leilão, na semana passada, 200 lotes - cassetes, roupas, manuscritos, letras, peças de colecção ou fotos.
Oitenta por cento do espólio foi vendido. Rendeu cerca de 35 mil euros, sete mil contos de réis, chega e sobra para comprar a versão mais baixa do novo Volkswagen. Foi o que a FPF retirou do ordenado de Scolari, quando se portou mal e agrediu um jogador sérvio.
Há 15 dias decorreu uma audiência preliminar no Funchal. O deputado do PS Carlos Pereira acusa Jardim de declarações insultuosas. O insulto pode-lhe custar 35 mil euros.
Existiu quem achasse que o leilão foi um insulto. Falou-se de mercantilização. Se não existisse, o espólio nem seria preservado. Assim, ficou aos bocados mas, valha-nos isso, salvaguardado.
O insulto é que ele merecia mais. E nós também. Não se viram instituições culturais, editoras ou coleccionadores. Apenas gente com afecto pelo homem e artista. Já não é mau. Mas queria-se mais.
Em Inglaterra, 35 mil euros valeria uma peúga de Madonna. O ano passadoo museu Victoria & Albert de Londres dedicou uma exposição a Kylie Minogue, com hot pants e tudo. Ou seja, arte. Pelo menos algumas das formas que a arte tem de se apropriar de imagens e símbolos pop.
Em França, far-se-ia uma casa-museu patrocinada pelo organismo estatal Bureau de Export. Em Espanha bater-se-iam pelas 41 cassetes de gravações originais. Aqui foi à primeira, adquiridas por 1000 euros, a base de licitação. Quase nada. Mas a peça mais cara do leilão.
Nos EUA haveria uma barbearia, denominada É prò Menino e prà Menina, como a do António, onde poriam todas as peças. Serviriam cafés em chávenas Maria Albertina e haveria bolinhos da marca O corpo é que paga. Não me venham com histórias. Não é preferível isso a não ter memória?
Se Portugal quisesse, o António, falecido em 1984, inspirador de Os Humanos, referência das novas gerações, seria estrela pop total. Assim, é estrela pop, aos bocadinhos."

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